A realidade mista e suas implicações

No meu texto anterior discuti sobre modelagem, com uma leve pegada quantitativa, com o objetivo de filtrar ruídos, ou fatos de factoides (fakes).

Por outro lado, não podemos nos esquecer que a modelagem, principalmente aplicada aos negócios, começa com modelos mentais, que vão se formando ao conversarmos com nossos clientes. Nesse teatro de diálogos e de observações, nossa arte é a de fazer boas questões, formular conjecturas e hipóteses e sutilmente expô-las para captar a ressonância com o cliente, ou perceber os ajustes que devemos fazer. Dedicarei esse texto para exemplificar um pouco de como fazemos isso.

Nesse fim de semana, corri os olhos sobre o relatório “Trends in Marketing Communications Law” da empresa Davis & Gilbert LLP. Um conjunto de 22 pequenos que abordam o panorama legal nos EUA, sobre os temas mais palpitantes para a indústria de marketing e propaganda, resumindo as mudanças mais significativas de 2020.

Os desafios e complexidades trazidos pela pandemia, as eclosões de manifestações sobre justiça social, as micro usinas de fake news e a presença de engenhos high tech em grande parte dos artefatos de nossa vida diária são os constituintes desse cenário.

A mediação entre nosso desiderato de justiça e qualidade de vida e a realidade factual, para a sociedade plural  em que vivemos, se dá por meio de um quadro legal e regulatório. Esse referencial evolui reativamente às manifestações dos eleitores, mas sempre filtrado por dispositivos legais, que balizam o sistema de representatividade democrática e que muitas vezes fazem com que a essência das convicções perca prioridade para a conveniência. Mudanças ocorrem, mas muitas vezes, os gatilhos que as desencadeiam são fatos que nasceram de aleatoriedades e não de discussão sistêmica e organizada através dos mecanismos de representatividade.

Para nós, pesquisadores de tendências, observa-las nos EUA, é importante, tanto como um exercício intelectual, como em reconhecimento da sua influência, como role model nos organismos internacionais e de suas empresas na forma de fazer negócios e monetizar atividades. Em resumo, há grande chance de que as tendências fortes hoje nos EUA desemboquem em nosso país no futuro próximo.

Toda esse introdução para dizer que iremos comentar brevemente dois casos do relatório e incentivar um diálogo interno que nos leve a conjecturas, a exemplo do que fazemos ao interagir com os clientes da LaraiaTech. De saída procuramos escolher dois exemplos arquetípicos, o primeiro de um segmento de negócios duramente atingido pela pandemia e outro de um segmento vivamente oportunizado.

Em uma primeira análise, notamos 3 grupos negócios quanto à resiliência à pandemia:

·         Aqueles cujas core atividades dependiam presença física de seus agentes e clientes – e que foram fortemente abalados.

·         Os que parte das atividades puderam ser exercidas remotamente e / ou a interação com os clientes substituída por distribuição mediada por terceiros – estes, conseguiram atenuar as perdas e se reequilibrar.

·         O grupo dos negócios nativamente digitais e high-techs, com destaque para o mundo dos games, que conseguiu crescer bastante abocanhando novos segmentos de mercado e criando novas formas de monetizar suas atividades.

Passemos aos comentários, com base na leitura.

1.      Entertainment - concentrando no business de produção de conteúdo para TV e streaming – setor duramente atingido pela pandemia.

Com a propagação da COVID-19 nos EUA, e com a ameaça de inviabilização de seus negócios, os grandes estúdios, serviços de streaming e suas entidades classistas trabalharam juntas, estabelecendo diretrizes de segurança de forma a viabilizar uma retomada segura de suas atividades. O foco foi em testagem generalizada, distanciamento social no set e criação de bolhas de produção quando possível. Contudo, a repartição dos custos adicionais gerados por estas medidas ainda não foi totalmente equacionada. Uma questão chave é identificar que custos são passíveis de seguro e quais não são, caso uma irrupção de casos trave uma produção em andamento.

Para se ter um olhar brazuca para o tema, eu sugiro que cada um compare o seu perfil de uso da TV em 2019 com aquele de 2020. No meu caso, meu tempo de TV aumentou um bocado, já que estou há mais de 10 meses em trabalho remoto.

Fazendo uma breve comparação percentual, meu tempo de noticiários subiu e se estabilizou. O tempo de (tele) esportes caiu, na medida em que poucos esportes indor continuaram a ser viabilizados em esquema de risco controlado e sem presença de público. No tocante a entretenimento, o estoque de novos episódios de séries, com produção padrão “grandes estúdios”, foi se esgotando de maio até setembro. Meu tempo de tela, que já era bastante diversificado foi migrando dos canais a cabo para novidades de streaming distribuídas pela Netflix, Amazon e outros, mas com padrão de produção menos sofisticados. Esses substitutos, no meu caso, são normalmente produzidos fora dos grandes estúdios norte-americanos (Universal, Disney, etc). Pude notar já no início de 2021, que alguns estúdios tradicionais deram início às gravações de novas temporadas de séries consagradas, um efeito da ação consertada dos estúdios, conforme comentado no documento em tela.

Uma das armadilhas ao traçar conjecturas é extrapolar na generalização, e este é mais um cuidado que tomamos quando analisamos os cenários dos nossos clientes aqui na LaraiaTech. O meu “mundinho” certamente não é um bom proxy da sociedade, ou mesmo do público em geral. Contudo, nos últimos meses minha troca de indicações de entretenimento com amigos definitivamente migrou de filmes, peças teatrais, concertos e séries tradicionais para as coreanas, algumas produções de menor monta da Europa e Canadá. Certamente que a saturação das telas no tele trabalho também nos fez recorrer saudosamente ao livro papel, mas não muito.

A leitura de fim de semana deu suporte às observações e conjecturas que vinha fazendo e tentando conferir, com base na mudança de meus hábitos e de meus amigos. Hollywood e os grandes estúdios “podem” ter parado na UTI, atingidos pela COVID-19. Mas minhas observações permitem tal conclusão? Ou seja, poderíamos retirar o “podem” da frase anterior? Outra dúvida, será que o retorno de algumas séries, que observei no início do ano, indicam que os estúdios já se recuperaram?  Certamente não. Não pesquisei dados objetivos para suportar tais conjecturas, mas se isso fosse um trabalho para cliente certamente o teríamos feito!

2.      Realidade mista: Navegantes influenciadores e propaganda nativa no mundo virtual - segmento vivamente oportunizado durante a pandemia.

Aqui o título já dá ideia da complexidade envolvida na regulamentação e constante evolução dos mecanismos e “workarounds” que os aplicativos inventam contorná-la (ou burlá-la).

Nesse mundo de realidade mista, ao clicarmos “Enter” entramos em um espaço onde nossa percepção de realidade física e virtual se misturam. Da mesma forma, a propaganda e os enredos de games ou relatos anedóticos se confundem gerando formas de monetização incompatíveis com parâmetros éticos de disclosure e neutralidade que esperamos das plataformas. Limites preconizados nas diretrizes da “Federal Trade Commission” tornam-se cada vez mais ineficazes pelos “jeitinhos” encontrados nesse universo de realidade mista.

Dentro do nosso novo normal pandêmico, foi enorme o ganho de penetração desse segmento de mercado que envolve sinergicamente multiplataformas sociais e seus key players. Esses, sendo os grandes influenciadores – blogueiros, podcasters e vídeocasters – que contam com meios de produção cada vez mais sofisticados e um séquito de “fãs” que cresce combinatoriamente. Esse enorme gerador de vendas, via propaganda embutida e sub-reptícia foi imediatamente identificado pelas empresas, ou seja, o uso dessa modalidade cresce exponencialmente e o “consumidor” inebriado pelas facilidades e ambiência imersiva deixa-se levar.

Há no entanto vários matizes de transparência. As mais lícitas sendo as propagandas ostensivamente avisadas e que somos obrigados a assistir momentaneamente em um interregno de um vídeo ou jogo “free” com que estamos interagindo. Mas nem só de um contexto lícito vive este setor, não podemos deixar de considerar as propaganda embarcadas em metáforas, figuras de linguagem e imagens supostamente e inocentemente usadas em uma crônica, crítica ou vídeo, apenas para citar algumas.

Neste ambiente, gamers, avatares e personas agora podem dispor de um completo vestuário, acessórios e implementos para que os jogadores possam customizar suas escolhas, mediante a um módico pagamento. Réplicas físicas desse consumo virtual são rapidamente providas nas lojas para nossos gamers possam “desfrutar” desse complemento físico da realidade virtual imersiva em que vivem.

Qual é o grau de conscientização que nossas crianças, jovens e seus responsáveis têm do teatro de operações de venda a que somos expostos? Ao clicarmos na “porta de entrada desse mundo”, como é dito no documentário “poder das redes” nós nos tornamos o produto, que é distribuído como potencial / provável consumidor por várias camadas de algoritmos às empresas. Essas sim, os verdadeiros players conscientes nesse mundo de realidade mista.

Deixo claro que a realidade mista tem múltiplos usos nobres e também uma parte lúdica dos jogos e torneios online, que é apaixonante. As competições já passam na TV a cabo e o número de adeptos cresce rapidamente.

A questão de modelagem aqui é que nesse segmento é quase impossível ter uma regulamentação que acompanhe o progresso das empresas. Portanto, é preciso que como seres pensantes, saibamos ter modelos mentais adequados para sermos atores do uso consciente e proveitoso.

Antonio C. O. Barroso, PhD

Diretor de Inovação e Tecnologia (CInnO e CTO)

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